Foram, possivelmente,
os anos mais felizes da minha vida,
e não é estranho, dado que ao fim de contas
ainda não tinha dez.
As vítimas mais tristes da guerra
são as crianças, diz-se.
Mas também é certo que é um bicho a criança:
perdoam-lhe a brutalidade
dos adultos, ela sabe aproveitá-la,
e vive mais que ninguém
nesse mundo demasiado simples,
tão parecido ao seu.
Para começar, a guerra
foi conhecer os páramos com vento,
as sementeiras de gleba pegajosa
e as tardes de azul, celestes e um pouco pálidas,
com os montes de neve rosada na distância.
O meu amor pelos invernos da meseta
é uma consequência
de ter havido em Espanha quase um milhão de mortos.
A salvo nos pinhais,
— pinhais da Mesa, da Roseira, do Ginete! —,
o medo e a desordem dos primeiros dias
eram algo confuso, com essa irrealidade
dos momentos demasiado intensos.
E Segóvia parecia longínqua
como umna grande cidade, era quase a frente
— ou pelo menos um lugar heróico
um sítio onde tenentes trazendo um braço ao peito,
que nos emocionava visitar: a guerra
ficava ali ao alcance das crianças
tal como a querem.
Na volta, ao passarmos pela ponte Uñés,
procurávamos a areia remexida
onde estavam, sabíamos, os cinco fuzilados.
Depois a chuva desenterrou-os, levou-os rio abaixo.
E recordo-me também de um passeio a Coca,
que era a povoação mais próxima,
numa dessas manhãs em que a luz
é ainda, no ar, relâmpago de geada,
mas que anunciam já a primavera.
Minha lembrança, bem vaga, é somente uma imagem,
uma nítida imagem de felicidade
retratada num céu
para onde se apressa a torre da igreja,
entre um nimbo de pássaros.
E até os discursos, os gritos, as canções
eram como promessa de outro tempo melhor,
ofereciam-nos
um bilhete de volta ao século dezasseis.
Que criança não o aceita?
Quando por fim voltámos
a Barcelona, ficou-me por uns meses
a nostalgia daquilo, mas habituei-me.
Quem me conhece agora
dirá que a minha experiência
nada tem a ver com a as minhas ideias,
e é verdade. Minhas ideias da guerra mudaram
depois, muito depois
de ter começado o após-guerra. » 1
Assuma-se como paradoxal a inscrição deste texto no interior da argumentação atrás enunciada. Ele parece contrariar aquilo que foi argumentado, prescindido voluntariamente das marcas do literário, para se apresentar como o registo quase neutro de uma experiência: é difícil imaginar formulação poética formalmente mais funcional do que a deste texto. Ora, é esta secura de formulação, onde se corporiza o imediato da experiência infantil e a mediação da palavra por parte do adulto (muito depois / de ter começado o após-guerra) que torna possível a força da experiência proposta como literatura. Ela é-nos dada pelo rigor de uma formulação verbal que no mesmo movimento anula cada palavra diante do seu significado e faz deste simples correlato material dessa mesma palavra. O mundo é condição da palavra na estrita medida em que a palavra é ela mesma condição do mundo. Este texto de Jaime Gil de Biedma é disso uma espantosa afirmação: não há complacência, nem com o mundo, nem com as palavras.
1. Jaime Gil de Biedma, “Tento Formular a Minha Experiência da Guerra”, in Antologia Poética, edição bilingue, tradução de José Bento, Edições Cotovia, 91-95.